Tuesday, February 08, 2005

A PRESENÇA DE SANTO AGOSTINHO NA OBRA DE HANNAH ARENDT

Jorge Pais de Sousa

Em honra do Doutor Miguel Baptista Pereira[1]

As referências a Santo Agostinho são diversas na obra de Hannah Arendt, basta ter presente The Human Condition, Between Past and Future e The Life of the Mind. Na verdade o pensamento de Arendt estabeleceu uma relação fascinante, entre territórios tão distintos como são a teoria política, a história e a filosofia, mas não sem deixar de reflectir temáticas que o pensamento filosófico de Agostinho havia enfrentado muito antes. Todavia, nenhum livro da escritora interpela e dialoga, de forma tão directa e explícita, com o pensamento deste autor cristão, como a sua dissertação de doutoramento publicada na Alemanha, no ano de 1929, com o título original de Der Liebesbegriff bei Augustin.

Ora, é objectivo deste ensaio evocar os modos de presença e o significado contemporâneo da interpretação de Agostinho por Hannah Arendt, a propósito, justamente, de duas datas felizes e coincidentes: os 1650 anos que se assinalam este ano sobre o nascimento de Santo Agostinho; e os 75 anos que decorrem sobre a primeira edição da dissertação de doutoramento de Hannah Arendt. E como o faremos? Pontuando alguns dos momentos cruciais da vida e da obra de Arendt, na medida em que aludam à odisseia intelectual da sua relação com o pensamento de Agostinho e, ao mesmo tempo, espelhem e tematizem a complexidade da história do século XX.

Antes, porém, faremos duas observações introdutórias sobre esta mulher, quer no que respeita à sua relação com o tempo em que viveu, quer quanto ao seu estatuto enquanto intelectual. No que concerne à relação com o tempo, importa recordar que Hannah Arendt se incluiu numa geração de intelectuais que viveu o período trágico de entre as duas grandes guerras mundiais, a que acresceu o facto particular de Arendt, devido à sua condição de judia assimilada pela cultura alemã, ter sido vítima de perseguição anti-semita por parte das autoridades nazis. Neste sentido, não admira que a visão da história do século XX que nos transmitiu – e que ela viveu e sentiu de forma intensa -, seria marcada por dois fenómenos políticos e sociais, ao mesmo tempo devastadores e violentos nas suas consequências, como são a revolução e a guerra.[2] Esta visão, tumultuosa e sombria, da história contemporânea é-nos transmitida por alguém que, importa recordar, depois de fugir da Alemanha à perseguição das autoridades nazis, empreendeu mais tarde uma segunda fuga, agora do campo de trabalho de Gurs - onde estivera internada juntamente com Heinrich Blücher -, na sequência da ocupação da França pelas tropas de Hitler. Deste modo, o exílio dramático do casal Blücher para Nova Iorque, em 1941, foi o resultado da generalização da política de discriminação e de extermínio racista na Europa, mas também assinalaria um outro facto relevante, do nosso ponto de vista, e que foi o da deslocação transcontinental de uma parte significativa dos intelectuais alemães para os Estados Unidos da América. De facto, a chegada dos nazis ao poder no ano de 1933, implicara logo uma primeira vaga de emigração de intelectuais de ascendência judaica, como os filósofos e sociólogos, Theodor Adorno e Max Horkheimer, ou até o historiador George Mosse.[3] Ora, as vagas sucessivas de intelectuais emigrados para a América irão contribuir, a prazo, para a importância decisiva que a língua inglesa assume no presente, nos mais diversos domínios da ciência e da tecnologia, das ciências sociais e humanas, da filosofia, e até da arte contemporânea.

A segunda observação que faremos, prende-se com a natureza ambivalente do estatuto intelectual que Arendt construiu, em torno de si, após a sua saída da Alemanha. Com efeito, Hannah Arendt nunca considerou que o seu trabalho se pudesse inserir na tradição da filosofia política e, neste sentido, nunca se achou incluída no círculo restrito dos filósofos. Isso mesmo declarou a escritora durante uma célebre entrevista que concedeu ao jornalista Günter Gaus, no ano de 1964, e que foi na altura difundida pela televisão alemã, nos seguintes termos: «Eu não pertenço ao círculo dos filósofos. A minha profissão, se assim se lhe pode chamar, é a teoria política.»[4] E esclareceu a seguir que, e por ela: «há muito tempo que eu disse definitivamente adeus à filosofia. Como sabe, estudei filosofia, mas isso não quer dizer que tenha continuado a ser filósofa.» Depois, ao procurar estabelecer a diferença entre filosofia e teoria política, apresenta um argumento essencial para o seu entendimento do problema, o qual consistiria no facto de a tradição conotada com a filosofia política ser incapaz de ser objectiva perante a política. E porquê? Porque existe na tradição filosófica, e desde Platão: «uma espécie de hostilidade à política na maior parte dos filósofos, com muito poucas excepções. Kant é uma excepção.» Então, o programa de Arendt consistiria à época em procurar: «olhar para a política, se assim se pode dizer, com os olhos limpos de filosofia.»[5] Esse olhar límpido sobre a política – na linha até do método fenomenológico – estaria apenas orientado para um objectivo único e que é o da compreensão plena da teoria e da acção política. «O que é importante para mim é compreender. Para mim, a escrita está ligada a esta necessidade de compreender, faz parte do processo de compreensão... Há certas coisas que são assim formuladas.»[6] E com efeito, Anne Amiel concluiu, em livro recente, que Arendt nunca colocou em causa a filosofia propriamente dita, mas antes terá, constantemente, interrogado a possibilidade de uma filosofia política.[7]

1. O período da formação intelectual na Alemanha, anterior ao Holocausto

As duas observações gerais, antes expostas, relevam o problema humano da relação com o tempo histórico e a necessidade de o compreender para nele agir. Podemos até estabelecer um paralelo existencial e que não histórico - como nos sugere a reflexão arguta de James Bernauer, S.J.[8] -, entre a escritora do extraordinário The Origins of Totalitarianism e o autor do livro monumental A Cidade de Deus. E a que nível?

Repare-se que, em The Origins of Totalitarianism, Arendt expressou um cuidado único com o mundo, chamando à atenção para a emergência do mal radical em política, procedendo, para tal, à análise dos fenómenos históricos e políticos que irão conduzir o nacional-socialismo à política de extermínio programado dos judeus. Neste sentido, a nova forma de governo totalitário, que caracterizou a sociedade de massas, implicou o estudo da emergência de fenómenos como o anti-semitismo e o imperialismo.[9] O campo de concentração seria, no contexto histórico do século XX e das duas grandes guerras mundiais, a forma mais recente e radical desse mal e também dos crimes cometidos contra a humanidade. Por isso, quando mais tarde Hannah assistiu no ano de 1961, em Jersualém, ao julgamento de Adolph Eichmann, o conceito de mal passou a ser entendido como mal banal.[10]

Ora, também Agostinho de Hipona (354-430) viveu e lutou, no seu tempo, contra a acusação que pendeu de forma permanente contra os cristãos e segundo a qual estes seriam os responsáveis pela queda do Império Romano. Recorde-se que, à terceira tentativa e no ano de 410, o rei godo Alarico entrou em Roma e depois seguir-se-iam: «três dias e três noites de pilhagens, incêndios, destruições, violações, torturas, carnificinas. Depois, abarrotados com os despojos, os exércitos de Alarico retiraram.»[11] Foram, então, estes acontecimentos brutais que terão levado Agostinho a escrever A Cidade de Deus, como forma de empreender a defesa dos cristãos, não só para expressar o amor pela Igreja de Cristo, mas também o amor pela gloriosa cidade de Roma. Por isso, podemos considerar A Cidade de Deus como o único tratado de natureza política escrito por S. Agostinho. Por outro lado, sabemos também que a concepção de mal em Agostinho evoluiu de uma crença na realidade material do mal, durante o período maniqueu e que ficou expressa no De Libero Arbitrio, para a posição da «maturidade» cristã, na qual o mal é descrito como servidão ao pecado comum, mundaneidade essa que só a vontade livre pode pôr termo e que ficaria patente no De Natura et Gratia.[12]

Feito este paralelo existencial, pontuemos, agora, alguns momentos significativos do percurso biográfico e da odisseia intelectual de Arendt, até esta chegar à escrita de Der Liebesbegriff bei Augustin. Na verdade, Hannah havia nascido em Hanôver, Alemanha, em 1906, e fora a única filha de Paul e de Martha Cohn Arendt. Os pais de Hannah eram judeus educados e «assimilados» pela cultura alemã do seu tempo, possuíam inclinações esquerdistas no plano político e tendiam para um cepticismo no plano religioso. Este último facto, porém, não impediu que a sua filha tivesse frequentado a sinagoga e recebesse instrução religiosa no seio do judaísmo. Cedo a família Arendt irá viver em Königsberg,[13] onde Paul, engenheiro de profissão, adoece e virá a falecer vítima de sífilis, no ano de 1913, quando Hannah tinha apenas sete anos.

O falecimento e a ausência precoce do pai talvez se tenham projectado, mais tarde, no desassombro que perpassa o pensamento e a obra de Arendt. Seja como for, Martha Arendt registará no diário – escrito expressamente para acompanhar com todo o cuidado o desenvolvimento da filha – denominado de Unser Kind,[14] que tendo a pequena Hannah apenas quatro anos de idade e estando no seu primeiro ano de frequência do jardim-de-infância, o seguinte: «Não parece que haja nela dote artístico de nenhum tipo, bem como nenhuma destreza manual. Contudo, parece possuir uma certa precocidade intelectual e talvez mesmo uma dose de verdadeiro talento. Tem, por exemplo, memória, sentido de orientação e uma capacidade aguda de observação. Acima de tudo, um interesse vivo pelos livros e pelas letras. Agora já lê… todas as letras e os números sem que lhe tenham ensinado nada, simplesmente, adquiriu este conhecimento perguntando pelas ruas e por toda a parte.»[15] Já entre os dez e os onze anos, Hannah foi afectada por diversos problemas de saúde, mas no diário de Martha encontra-se anotado que, entre 1916 e 1917, a sua filha foi uma das melhores alunas, apesar das suas frequentes ausências na escola. E data também desta época o registo de um comportamento reservado e de tipo «misterioso» por parte da jovem.[16] Durante a frequência do liceu as suas colegas reparam no extraordinário vigor intelectual de Hannah Arendt e, como recordará a sua amiga de juventude, Anne Mendelssohn – descendente do famoso compositor: «‘ela havia lido tudo.’ Este ‘tudo’ abarcava a filosofia, a poesia, particularmente Goethe, muitas novelas românticas, alemãs e francesas, e as novelas modernas consideradas inapropriadas para a juventude pelas autoridades escolares, incluindo Thomas Mann.»[17] De facto, a juventude de Hannah e o ambiente familiar foram muito estimulantes para o aprofundamento da sua relação com a leitura em geral e com a Filosofia em particular, como a própria escritora o reconheceu mais tarde, na referida entrevista a Günter Gaus, nos seguintes termos: «…a necessidade de compreender manifestou-se muito cedo. Sabe, havia muitos livros na biblioteca lá de casa, eu só tinha de os procurar nas estantes.» E mais à frente: «Só posso dizer que sempre soube que queria estudar filosofia. Sobretudo, desde os catorze anos.» E quais os autores que marcaram a sua juventude? «Eu tinha lido Kant.» Mas para além de Kant: «…e antes do mais, Psychologie der Weltanschauungen de Jaspers, publicado, creio eu, em 1920. Nessa altura, eu tinha catorze anos. Logo a seguir, li Kierkegaard e foi por isso que mais tarde as duas coisas continuaram ligadas.»[18] Foi já com a leitura destes filósofos que Arendt concluiu com distinção o Abitur, ou seja, o exame que lhe deu acesso aos estudos superiores.

Elisabeth Young-Bruehl, a famosa biógrafa de Hannah Arendt, notou que os anos durante os quais esta realizou os seus estudos universitários, entre 1924 e 1929, foram exactamente os anos de maior estabilidade política e social para a conturbada República de Weimar. Todavia, o conservadorismo dominava o clima das universidades alemãs da época, quando Hannah Arendt deu início os seus estudos em Marburgo. Existiam então duas grandes orientações a pontuar o clima filosófico da época. Por um lado, os denominados cientismos: materialismo, empirismo, psicologismo e positivismo. Por outro, vários neokantismos ou formalismos, com particular destaque para o neokantismo das escolas de Baden e de Marburgo. Notava-se, no entanto, que apesar dos diversos grupos e escolas filosóficas - e até contra estes - se ia desenvolvendo de forma silenciosa uma corrente que defendia o regresso ou o renascimento da metafísica. Evidenciava-se, ainda, uma nostalgia por Hegel e por um sistema filosófico que superasse as divisões entre as diversas correntes de pensamento. E foi neste clima intelectual que Arendt iniciou os seus estudos superiores. Embora, e tal como a maioria dos estudantes universitários alemães do seu tempo, estivesse preparada para desenvolver os seus estudos em diferentes escolas, seguindo currículos e ouvindo professores diferentes, até encontrar a combinação adequada que lhe permitisse escrever a sua dissertação de doutoramento. A mobilidade dos estudantes era então uma realidade efectiva na Alemanha do seu tempo.

Na cidade de Marburgo, Hannah Arendt esperava contactar com a mais moderna e interessante tendência filosófica, a fenomenologia husserliana e, o discípulo perfeito, Martin Heidegger, o protegido de Edmund Husserl. No entanto, e naquele tempo, Heidegger dava já à fenomenologia novos desenvolvimentos e novas orientações. O filósofo, contudo, era ele próprio um homem ambicioso e aventureiro.[19] Em Marburgo, Hannah seria também aluna do teólogo Rudolf Bultmann e do filósofo Nicolai Hartmann. Quanto a Bultmann, importa referir que ele animava um círculo de leitores de literatura grega, onde o próprio Heidegger e Arendt tinham presença assídua. E vai ser no ano de 1925 que tem início a relação extraordinária, entre Heidegger e Arendt, a qual põe, abruptamente, um fim à juventude de Hannah.[20] Na verdade, Heidegger ficara completamente fascinado por aquela sua aluna, como ele próprio escreveu: «sonhava com a imagem da jovem que, com um impermeável e um sombrero sobre os olhos grandes e quietos, entrou pela primeira vez no meu gabinete e que, poderosa e reservada, respondeu com moderação a todas as perguntas – e então transponho a imagem para o último dia do semestre – e só então sei que a vida é história.»[21] Porém, e apesar da relação secreta mantida entre os dois, Heidegger desenvolvia, entretanto, um imenso labor filosófico naquele que foi considerado um dos seus períodos mais fecundos do ponto de vista intelectual, pois nessa altura iniciara a escrita do seu livro fundamental Sein und Zeit (1927), ao qual se seguiria Kant und das Problem der Metaphysike (1929). E uma vez chegado o Verão reconhecia que Arendt contribuía para o seu aparecimento, porque: «foi um semestre maravilhoso e disponho-me a trabalhar com grande ímpeto… Tu tens parte nele.»[22] Assim como, mais tarde e logo que o livro foi publicado, Arendt terá sido das primeiras pessoas a lê-lo, como Heidegger afirmou: «Leste o meu livro [Ser e Tempo] – quer dizer, fundiste o teu amor com a tua nova felicidade.»[23]

De facto, foi para evitar problemas no desenvolvimento dos estudos e também a pensar no futuro tema da dissertação de Arendt, que Martin Heidegger a recomendou ao seu colega - e então amigo - Jaspers. Deste modo, no semestre de Verão de 1926, Arendt viaja para Heidelberg, no sul da Alemanha, para estudar com Karl Jaspers. Nessa altura, e quando Arendt chega à cidade de Heidelberg, Jaspers dava também ele início a um trabalho de recolha de notas para gizar o plano daquela que seria a sua obra maior, em três volumes, intitulada Philosophie, a qual no entanto só seria publicada no ano de 1931. Portanto, Arendt não só teve o privilégio de estudar com dois dos maiores nomes da filosofia da existência alemã, pertencentes à geração cuja maturidade filosófica é atingida no período de entre as guerras, como também participou nos seminários e nas discussões que determinarão o surgimento das suas obras maiores.[24] Não admirando que anos mais tarde e quando Jaspers, finalmente, dava por terminada a escrita do seu livro mais importante, lhe dirigisse uma carta afirmando: «Espero que Philosophie surja dentro de duas a três semanas. Darei em breve indicações ao editor para te enviar um exemplar, mas por favor não consideres que se trata de uma obrigação para leres o livro. Ficarei satisfeito por saber que estará nas tuas mãos e que podes olhar para ele quando quiseres.»[25] Na Universidade de Heidelberg, Jaspers recomendará a Hannah Arendt que frequente os seminários, entre outros, do sociólogo Alfred Weber, do psiquiatra Viktor Von Weizacker, do germanista Friedrich Gundolf e do teólogo Martin Dibelius. O seminário sobre o Novo Testamento de Martin Dibelius e os seus profundos conhecimentos do grego e do latim, serão depois particularmente importantes quando Arendt trabalhar na redacção da sua dissertação de doutoramento. Mas foi também em Heidelberg, que Arendt conheceu Kurt Blumenfeld, um activista sionista, que antes havia estudado Direito na Universidade de Königsberg, período durante o qual se interessara por aquela problemática. Em 1909, Blumenfeld tornara-se o secretário-geral da Organização Sionista da Alemanha e vai desenvolver, a partir dela, uma importante actividade como conferencista e divulgador do sionismo.

No semestre de Inverno de 1926-1927, Arendt desloca-se para a Universidade de Freiburg para, finalmente, ser aluna de Edmund Husserl, concluindo, desta forma, o trajecto de estudos de graduação que antes se propusera fazer no âmbito da sua preparação universitária.

No ano lectivo seguinte, Arendt regressa a Heidelberg para escrever a sua dissertação de doutoramento, cujo tema escolhido seria, como já foi antes referido, o conceito de amor em Santo Agostinho, sob a orientação de Karl Jaspers. Neste professor, Arendt encontrou qualidades humanas e uma integridade inexistentes em Heidegger. Qualidades que Hannah Arendt viria mais tarde a reconhecer e a enaltecer, através de uma carta que lhe escreveu de Nova Iorque, por ocasião do aniversário dos setenta anos de Jaspers, nestes termos: «Queria agradecer-lhe por aqueles anos iniciais em Heidelberg quando era meu professor, o único que sou levada a reconhecer que tive enquanto tal; e pela felicidade e apoio que encontrei ao verificar que alguém pode ser educado em liberdade.»[26] Foi, pois, durante o período da escrita de Der Liebesbegriff bei Augustin que Arendt fortaleceu uma amizade, que perdurará durante toda a sua vida, e que só foi interrompida com a 2.ª Guerra Mundial. Livro que foi editado na Alemanha em 1929 e que inaugura não só todo o percurso do pensamento de Arendt, mas também se tornou uma espécie de espelho, ao qual a escritora regressará mais do que uma vez, para o reescrever e incorporar nele conceitos por ela desenvolvidos posteriormente noutros livros, com o objectivo de vir a editá-lo de novo nos Estados Unidos. Porém, a tarefa da revisão e de reescrita do texto ficaria inacabada.[27] Mas o que trata, então, a sua dissertação de doutoramento que concluiu com apenas 22 anos de idade? E porquê, antes de mais, a escolha de um autor como Agostinho de Hipona, bispo católico e santo?

1.1 «Tornei-me para mim mesmo numa interrogação»

De algum modo, porque para autores como Jaspers e Heidegger, era fundamental regressar a pensadores cristãos como Agostinho, Pascal e Kierkegaard, para (re)pensar o tema da existência. Recorde-se, por exemplo, como Heidegger, em Sein und Zeit, quando aborda o [ser-aí] dasein da temporalidade,[28] serve-se da concepção de tempo desenvolvida por Agostinho no famoso livro XI das Confissões.[29] Daí, por exemplo, que o colega de Arendt, Hans Jonas – que conhecera em Marburgo e com quem depois desenvolveu amizade em Heidelberg –, já tivesse escolhido para o seu doutoramento, o tema: Agostinho e o problema da liberdade. À época, o entusiasmo e o interesse pelo estudo da obra de S. Agostinho não se confinavam só ao meio universitário e, por exemplo, eram também os círculos religiosos, de protestantes e católicos, que debatiam e produziam textos sobre esta figura carismática do cristianismo.[30]

No entanto, julgamos que Hannah Arendt soube captar como poucos a problemática da existência em Agostinho. E é logo na introdução, que Arendt se propõe interrogar uma existência humana que reflecte sobre si própria, mas debaixo do olhar de Deus. E, por isso, destacou o seguinte trecho escrito por Agostinho: «tornei-me para mim mesmo numa interrogação» /quaestio mihi factus sum.[31] Ora, é neste contexto reflexivo que a dissertação de Arendt aborda o conceito estruturante do amor, patente nos escritos de S. Agostinho, ou melhor dizendo, os conceitos de amor agustinianos. Com efeito, a estrutura académica da obra assenta em três partes distintas: a primeira analisa o amor como desejo (appetitus); o amor na relação entre o homem e o Deus Criador (creature e creator); e o amor ao próximo, ou a vida em sociedade (vita socialis). É de referir ainda que a perspectiva em que se coloca Arendt não é a de fazer um exercício de reflexão teológica, mas antes a de ver na obra de S. Agostinho os problemas que possuem valor essencialmente filosófico. Por outro lado, a leitura da edição crítica que hoje possuímos deste texto, revela também - e apesar das sucessivas revisões a que a autora o submeteu - a terminologia filosófico-ontológica de Heidegger e de Jaspers, patente em expressões como: a «relação com outros no mundo», ou «a relação ao mundo», etc.

Como é que Arendt justifica a sua intenção de interpretar o conceito de amor em Agostinho? Primeiro, porque o pensamento de Agostinho sobre o amor constrói-se a partir de conceitos operativos que remontam aos tempos pré-teológicos ou da pré-conversão. Segundo, esta forma de interpretar Agostinho coloca o problema da compreensão da auctoritas. Posto assim o problema, e como viu Patrick Boyle, S.J., Arendt identifica três conceitos de amor em Agostinho: o amor como desejo (conceito pré-teológico); o amor como cupidez (pré-teológico); e o amor como vizinhança ou proximidade (conceito cristão).[32] Arendt constatou, deste modo, que o conceito de amor em Agostinho está na sua génese filosoficamente desunificado. E concluiu, ainda, que a fonte real da relevância do próximo em Agostinho é o passado. «Este passado remoto é comum a todos os homens.»[33] Nele revela-se uma situação comum de mortalidade, de igualdade de todos perante o pecado, perante a qual se revela a acção redentora de Cristo, que abre para uma igualdade de todos na Graça. Assim, o amor ao próximo, para o crente, torna-se a expressão normativa da sua nova igualdade. Porém, comentemos, ainda que de forma sintéctica, as três partes fundamentais da edição revista e reescrita por Arendt na América, agora com o título em inglês de: Love and Saint Agustine.

Na primeira parte, a que aborda o amor como desejo, analisa-se a concepção agustiniana da existência humana e, no fundo, qual é o seu objectivo último. Constata-se que a vida não é desejada pelo indivíduo. Contudo, e porque a possibilidade de perder a vida no futuro é real, a própria vida torna-se o principal objecto de desejo, enquanto o medo da morte se torna uma forma de expressar o amor pela vida. Logo, as noções de caridade/caritas e de cobiça/cupiditas, em Agostinho, derivam, em última instância, da estrutura do desejo/appetitus. Assim sendo, o amor à vida, teria, ele próprio, implicações sobre todos os objectos do desejo, bem como sobre a concepção de vizinhança, ou de proximidade.[34]

Na segunda parte, em que Arendt analisa o amor na relação entre o homem e o Deus Criador (creature e creator), detecta nela a natureza irreconciliável das ideias ontológicas em Agostinho. Assim, e porque a interpetação do Ser em Agostinho é guiada pela concepção Grega do Ser, neste sentido, por ela equiparou o Ser com a estrutura eterna do mundo.[35] Porém, a partir do momento em que é a fé religiosa que vai estar na origem da sua interpretação cristã do universo, nessa medida, toda a existência mundana passa a ser concebida como criada por Deus. Ora, esta última concepção nega a visão Grega do Ser concebido como aquilo que é eterno em si. Constata também que é a visão cristã que domina os últimos escritos de Agostinho, ainda que insista que esta última só pode ser entendida em conjunção com a visão inicial do Ser, a qual herdara, sobretudo, de Plotino, um filósofo neoplatónico. Então o mundo é visto explicitamente como criação de Deus e, ao mesmo tempo, como um mundo humano constituído por criaturas que nele habitam e amam a criação de Deus. E é aqui que, segundo Arendt, o conceito de caridade/caritas se torna crucialmente importante em Agostinho, quanto mais não seja para compreender a natureza irredutível das suas concepções ontológicas. A criatura/creature reconhece a sua dependência em relação a Deus/creator e compreende que a opção pelo mundo, em vez da opção por Deus, só pode ser a opção pela morte. A caridade torna-se, então, a relação privilegiada que o crente estabelece com todos os outros em imitação de Cristo.

Na última parte, a que trata do amor ao próximo, ou da vida em sociedade, a vida social/vita socialis é, na perspectiva de Arendt, indissociável da importância específica do próximo. A fé torna-se agora um conceito central, porquanto até aqui, ela estivera presente só do ponto de vista do indivíduo e das suas preocupações sobre a origem (alfa) e o fim (omega) último da existência. Em ambas as situações o indivíduo permanecia isolado. Agora, é a relação com os outros que é objecto de análise e reflexão. E o que é que fundamenta o encontro com os outros? Uma vez mais, a fé em Cristo. Na medida em que, a consciência que o indivíduo possui de pertencer a uma mesma fraternidade relapsa, é também o fundamento do amor ao próximo, porquanto é na relação de igualdade e de partilha com o outro que se revela a fé em Cristo. O que quer dizer que amamos o pecador, não porque o pecado caracteriza o passado comum – o pecado conduz sempre para a morte -, mas porque a Graça revelada no outro e no próprio, através do exemplo de Cristo, origina uma transformação compreensiva do passado comum. A igualdade na falta torna-se, para o cristão, o pano de fundo para uma igualdade na Graça. O cristão é obrigado a amar o outro, não na base de uma humanidade partilhada, mas sim na imitação de Cristo.[36]

Uma vez concluída a sua dissertação de doutoramento, então entendida somente como prova de capacidade científica, Hannah Arendt alimentava planos para leccionar ao nível universitário e o sistema alemão requeria para esse efeito uma segunda tese, ou tese de Habilitation, enquanto prova de aptidão académica para leccionar ao mais alto nível de ensino. Por isso, no Verão de 1929, Arendt obteve uma bolsa para preparar uma tese sobre o romantismo alemão, a qual foi obtida com cartas de recomendação de Karl Jaspers, Martin Heidegger e Martin Dibelius, sob a condição de editar rapidamente a sua dissertação de doutoramento. É um facto, porém, que o avanço do desemprego, nesta fase crítica da República de Weimar, criara um clima na Alemanha que tendia a despertar o sentimento anti-semita. Daí que Arendt tenha iniciado naquele ano a escrita de Rahel Varnhagen: The Life of a Jewess, embora, devido à ascensão do nazismo e à sua fuga da Alemanha, só o venha a publicar como livro nos Estados Unidos, em 1958.[37] Trata-se de uma obra que tem sido interpretada como uma reflexão sobre a marginalidade humana e, neste sentido, tem muito de autobiográfico, mas não deixa de ser também e fundamentalmente uma abordagem da questão judaica. É importante, contudo, lembrar que Arendt se especializara antes no estudo de um autor que fundara o género biográfico, S. Agostinho e as suas Confissões dirigidas para Deus. Agora, ao estudar o romantismo do século XVIII, Hannah Arendt confronta-se com um outro cultor do eu e do diálogo dirigido para a noção de verdade, Jean-Jacques Rousseau e as suas homónimas Confessions. Este último texto tornara-se também ele uma leitura importante para a época e, em particular, para os círculos românticos do século XVIII. A própria Rahel Varnhagen, justamente, havia-o lido e comentado. Daí que Arendt vá centrar o livro no estudo da existência de Rahel - que viveu entre 1771 e 1833 - e na rede de relações estabelecida entre ela e a classe média alemã, quando judeus e gentios nobres estabeleciam uma familiaridade amigável. O palco desta sociabilidade era o salão, o qual constituía um teatro adequado para um convívio, cujas paredes permitiam a Rahel cultivar o seu espírito e desenvolver um brilho intelectual impossível de alcançar fora dele. Os intelectuais iluministas viam à época nos judeus uma oportunidade para praticar a arte da tolerância. Na verdade, entre 1790 e 1806, Rahel recebeu e estabeleceu convívio com os escritores famosos do seu tempo, como os irmãos Humboldt, Friedrich Schlegel, Friedrich Schleiermacher e, mais tarde, com Hegel, Ranke e Heinrich Heine. Contudo, este livro de Arendt tornou-se importante porque nele aplicou e desenvolveu as noções de «pária» e de «parvenu», para compreender o percurso e o drama pessoal de Rahel. Qualquer destas duas noções já tinham antes sido propostas por Max Weber, porém, agora Arendt vai utilizá-las para designar, claramente, o anti-semitismo germânico e as tentativas de assimilação cultural e social dos judeus na Alemanha, a propósito do estudo de caso de Rahel Varnhagen.[38] As mesmas noções que virá depois a utilizar e a desenvolver, novamente, na escrita de The Origins of Totalitarianism.

2. O pós-Holocausto e a diáspora americana

Porém, a relativa estabilidade económica da República de Weimar estava, então, a aproximar-se perigosamente do fim, já desde o ano de 1928. O desemprego crescia e, em Outubro de 1929, tinha lugar o crash da bolsa de valores de Nova Iorque, a situação económica mundial tornara-se crítica. O Tratado de Versalhes e o pagamento das reparações de guerra nele previstas abatem-se com mais intensidade sobre os alemães. E se os trabalhadores são a classe mais afectada com a crise económica, também os artistas e os intelectuais não deixam de ser atingidos pela situação, até por que muitos deles estão desempregados. Para estes últimos, a vida em Berlim era suportada à custa da realização de trabalho precário, ou então através da ajuda de amigos. Foi neste contexto que Arendt resolveu viver e depois casar, com o jovem, judeu e filósofo, Günther Stern. Este estava desempregado e não tinha perspectivas de trabalho em Berlim, pelo que decidiu apresentar uma tese de Habilitation em Frankfurt. E quando expôs naquela universidade o plano do seu trabalho, perante um júri que incluía dois membros ilustres da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Max Horkheimer, o psicólogo Max Wertheimer, e dois dos mais jovens e promissores professores de Frankfurt, o teólogo Paul Tillich e o sociólogo Karl Mannheim, Stern foi encorajado a avançar com a preparação de uma tese no domínio da filosofia da música. De facto, Stern possuía qualificações específicas neste âmbito, como sejam: conhecimentos sobre teoria da música, domínio de instrumentos como o piano e o violino, além de que esta área recebera sempre pouca atenção da filosofia, sobretudo, desde Schopenhauer e Nietzsche. Mas o júri esquecera um facto crucial: o recente trabalho de Adorno, sobre a visão marxista da sociologia da música. Assim, logo que Stern apresentou uma versão preliminar da sua investigação, Theodor Adorno não considerou que o trabalho de Stern fosse satisfatório, pois este abordava a teoria da música segundo uma perspectiva não marxista. Arendt registou o episódio e nunca esquecerá o sectarismo da Escola de Frankfurt. A verdade é que muitos dos seus membros, até por serem de ascendência judaica, em breve irão ter de emigrar da Alemanha, como já foi antes referido.[39]

Seria, contudo, no ambiente intelectual de Frankfurt que Arendt começou a ler Marx, Lenine, Trotsky e, sobretudo, Rosa Luxemburgo. No principal livro de Rosa, A Acumulação do Capital, Arendt atendeu à tese central nele exposta – ainda hoje cheia de actualidade num mundo que se diz globalizado - e que explica a razão porque o capitalismo não dá sinais de desagregação, apesar das suas contradições económicas. Rosa procurou identificar uma causa externa que explique, ao invés, a subsistência e o crescimento do capitalismo. Para tal, desenvolveu a teoria do chamado terceiro factor, ou seja, uma teoria que sublinha o facto de o processo de crescimento económico não ser simples consequência das leis inatas a que obedeceria a produção capitalista – segundo a teoria marxista – «mas da subsistência, no campo, de sectores pré-capitalistas que o ‘capitalismo’ ia captando e atraindo para a sua esfera de influência. Depois de este processo alastrar a todo o território nacional, os capitalistas viam-se obrigados a dirigir as atenções para outras zonas do mundo, para os países pré-capitalistas, e a arrastá-las para o processo da acumulação de capital que, por assim dizer, se alimentaria de tudo quanto fosse exterior a si próprio.»[40] Em nossa opinião, esta teoria do terceiro factor de Rosa Luxemburgo está subjacente à concepção de imperialismo que Arendt irá desenvolver, mais tarde, em The Origins of Totalitarianism. Reteve ainda de Rosa Luxemburgo, a importância por ela dada ao predomínio da questão republicana sobre a questão nacional, tal como a prioridade da liberdade, individual e pública, em qualquer circunstância em que o problema se coloque.[41]

Por outro lado, foi a ascensão galopante e o domínio do nazismo por toda a Alemanha que vão despertar a consciência política da jovem intelectual. A despoletar a acção política, a memória de Arendt identificou o seguinte acontecimento: «…27 de Fevereiro de 1933, data do incêndio do Reichstag e das prisões ilegais que tiveram lugar nessa mesma noite. Chamaram-lhes detenções preventivas. Porém, como sabe, as pessoas foram encarceradas nas prisões da Gestapo ou enviadas para os campos de concentração. O que então começou a acontecer foi monstruoso e é muitas vezes ocultado por factos mais tardios. Para mim, foi um choque imediato e foi a partir desse momento que passei a sentir-me responsável. O que significa que tomei consciência do facto de que não podia continuar a contentar-me com um papel de espectadora. Procurei agir em vários domínios… Eu tinha, de qualquer maneira, a intenção de emigrar. Pensei imediatamente que os judeus não podiam permanecer na Alemanha.»[42] E vão ser os seus contactos com os círculos de sionistas e, particularmente, com Kurt Blumenfeld, que a levam a suspender o seu trabalho filosófico. Embora, Arendt não fosse sionista e não tivesse nada a ver com estes do ponto de vista político, todavia, reconhecia que os sionistas tinham no terreno uma organização que poderia fazer alguma coisa de concreto pelos judeus. Foi então que estes lhe propuseram que organizasse uma compilação de todos os testemunhos anti-semitas que encontrasse na imprensa, com vista a uma posterior divulgação fora da Alemanha. Arendt deu, deste modo, concretização a um princípio de acção que então formulou nestes termos: «Quando somos atacados como judeus, é enquanto judeus que temos de nos defender.»[43] Ao mesmo tempo, este princípio de acção foi acompanhado por um juízo de condenação da atitude de todos os intelectuais que, de alguma forma, foram coniventes com o nazismo, onde se inclui aqui o comportamento de Heidegger: «O problema, o problema pessoal não era tanto o que faziam os nossos inimigos mas aquilo que os nossos amigos faziam. O que aconteceu nessa época, nessa vaga de uniformização que era de resto bastante espontânea e que, fosse como fosse, não resultava do terror, foi que um vazio se formou de certo modo à nossa volta… E isso foi uma coisa que nunca mais pude esquecer. Deixei a Alemanha dominada pela ideia, que era naturalmente um tanto exagerada: nunca mais! Nunca mais quero saber dos intelectuais para nada, não quero ter nada a ver com essa sociedade.»[44] Foi neste contexto político que Arendt seria detida em Berlim e sujeita a interrogatório durante oito dias pelas autoridades nazis. Após a sua libertação, resolveu fugir de imediato da Alemanha, acompanhada da sua mãe. Viajaram ambas sem documentos em direcção a Praga. Depois de uma breve estadia na Checoslováquia, as Arendt partiram em direcção a Génova, onde Hannah trabalhou durante algum tempo para o Bureau International du Travail, organismo dependente da Sociedade das Nações. Todavia, Arendt não tencionava viver na Suíça e, em breve, viaja para Paris, onde a aguardava Günther Stern. Terminava com o refúgio em França, um primeiro período da vida de Hannah Arendt marcado, principalmente, pela sua educação e pelo despertar da consciência política.

A partir de 1933, Arendt irá viver 18 anos como cidadã apátrida, portanto sem possuir direitos políticos. Contudo, esta foi, e não talvez por acaso, uma fase da sua vida marcada por uma grande actividade política. Em Paris, Hannah Arendt deu continuidade ao seu trabalho de apoio às organizações sionistas. Desenvolveu então vários esforços neste domínio, de entre os quais avulta o facto de ter sido secretária-geral da Juventude Aliyah, então uma organização vocacionada para educar e preparar jovens judeus para emigrarem e se estabelecerem na Palestina. E foi com estas responsabilidades que, em 1935, Arendt acompanhou um grupo de jovens judeus à Palestina, o que constituiu também uma oportunidade para conhecer aquele território. Entretanto, e fora dos momentos de trabalho, em Paris, Hannah e Günther Stern frequentam o Quartier Latin, onde por intermédio de Stern conheceu, pessoalmente, vários intelectuais refugiados, como foi o caso do dramaturgo Bertolt Brecht e do crítico literário Walter Benjamin.[45] A ambos virá a dedicar, mais tarde, dois textos luminosos.[46] No ano de 1936, ano da Frente Popular e do governo presidido pelo socialista Léon Blum, e numa altura em que o seu casamento com Günther Stern estava em crise, Hannah travou conhecimento com Heinrich Blücher (1899-1970), um gentio alemão, operário, activista espartaquista e filósofo autodidacta, que se tornaria o seu segundo marido e companheiro. Blücher reconduziu Arendt a retomar a leitura de autores marxistas e, neste sentido, despertou-lhe um «Novo Mundo».[47] Porquanto, foi então que Arendt se abriu para além da temática da questão judaica e aprendeu, com Blücher, a pensar do ponto de vista político e a observar do ponto de vista histórico. Testemunho directo do amor e do convívio intelectual estabelecido entre eles, ao longo das suas vidas, foi a correspondência volumosa que travaram durante mais de três décadas, para quebrar os longos períodos de ausência em que Arendt ensinava nas mais prestigiadas universidades americanas, ou enquanto duravam as suas inúmeras viagens e estadias pela Europa.[48] Foi, pois, durante a década de 1936 a 1946 que Arendt elegeu o problema político como um novo campo de trabalho e a reflexão que daí resultou, estimula e anima o conjunto dos seus livros posteriores: The Origins of Totalitarianism, The Human Condition, Between Past and Future, On Revolution, e Crisis of the Republic.

Em Maio de 1940, o governo francês determinava que os judeus alemães deveriam ser concentrados em campos para refugiados. É então que Hannah e Blücher são internados no campo de Gurs, no sul de França, próximo da fronteira com os Pirinéus. Em Outubro daquele ano, vivia-se talvez o momento mais sombrio da guerra, porquanto a França capitulara face ao avanço do nazismo, «a Inglaterra sentia-se ameaçada e, por último, o pacto entre Hitler e Estaline ainda estava intacto, cuja consequência mais temida, nesse momento, era a estreita colaboração entre as duas polícias secretas mais poderosas da Europa»[49] e foi nesta conjuntura política que o seu amigo Walter Benjamin, num momento de desespero e quando tentava a fuga para Espanha, irá suicidar-se, ao ter conhecimento de que as autoridades franquistas haviam encerrado a fronteira. Entretanto, o casal Blücher que conseguira sair de Gurs e ficara a aguardar, em Montauban, a concessão de um visto para Martha Arendt, tem conhecimento de medidas provisórias de abrandamento da vigilância da fronteira pelas autoridades do governo de Vichy e resolve, na sequência, tomar de imediato o comboio em direcção a Portugal. Permaneceriam em Portugal durante três meses, até embarcarem em Lisboa para Nova Iorque. Durante a estadia em Portugal, Hannah Arendt e Heinrich Blücher, aproveitaram para ler o manuscrito das Theses on the Philosophy of History, que Walter Benjamin lhes havia entregado em Marselha e que deveriam fazer chegar ao Institut for Social Research de Nova Iorque.[50] No ano de 1942 e já nos Estados Unidos, Arendt e Blücher, tiveram conhecimento de que os nazis haviam criado campos de concentração e também que as pessoas internadas no campo de Gurs foram enviadas para Auschwitz para ali serem exterminadas.[51]

2.1 Amor mundi

Quando o casal Blücher se instalou em definitivo em Nova Iorque, em Maio de 1941, Arendt começara a escrever para o jornal Aufbau [Reconstrução], um semanário em língua alemã, publicado naquela cidade e dirigido para a comunidade de emigrados alemães. Aí começou a defender pontos de vista polémicos para o desenrolar do conflito mundial, de que é exemplo a ideia de criar um exército judeu, que superasse a tradicional posição do judeu como espectador do seu próprio destino. Tal como defenderá mais tarde, entre 1948 e 1950, num conjunto de artigos dedicada ao problema, a criação de uma Palestina federada, com judeus e árabes como partes iguais dessa federação. No final da guerra e logo na primeira carta que endereçou a Karl Jaspers, na qual se propunha informá-lo sobre aquilo que fazia depois de ter saído da Alemanha, definiria a sua actividade profissional e, ao mesmo tempo, referia-se também às dificuldades que sentia em se adaptar a uma sociedade e a uma cultura diferentes, nestes termos: «Então tenho que lhe pedir a sua benevolência, o mesmo é dizer que não se esqueça que agora escrevo numa língua estrangeira (e este é o problema da emigração)… Desde que cheguei à América – quer dizer, desde 1941 – tornei-me numa espécie de escritora freelancer, qualquer coisa entre um historiador e um jornalista político.»[52] Com efeito, após o Holocausto, tratava-se de reconstruir um mundo democrático e de enfrentar as novas realidades políticas e históricas, à luz dos escombros da cultura herdada de uma Europa devastada pela guerra. Daí que, na já referida entrevista a Gaus, Arendt tenha também afirmado: «A Europa pré-hitleriana? Não posso dizer que nunca tenha tido alguma nostalgia. O que permaneceu? A língua permaneceu.» E à pergunta seguinte, sobre qual o significado especial que atribuía à língua materna, respondeu: «Uma importância enorme. Sempre me recusei, conscientemente, a perder a minha língua materna. Sempre mantive uma certa distância tanto em relação ao francês, que outrora falei muito bem, como em relação ao inglês, que é a língua em que hoje escrevo.»[53] Mas o clima intelectual norte-americano criava-lhe novos desafios e data do final da década de quarenta, o início de uma amizade profunda com a escritora Mary McCarthy, amizade que se traduziu, uma vez mais, numa correspondência e num diálogo fecundos de quase 20 anos, entre duas mulheres que viveram apaixonadamente o seu tempo.[54]

Assim, consideramos, neste ensaio, que o texto de Love and Saint Agustin, até pela história particular que tem subjacente, faz a ponte entre o percurso filosófico da escritora iniciado na Alemanha e as problemáticas que irá desenvolver nos Estados Unidos no tempo que se seguiu ao Holocausto. No ano de 1951, Hannah Arendt tornou-se cidadã norte-americana e passou então a usufruir dos direitos políticos correspondentes. Foi ainda neste ano que publicou The Origins of Totalitarianism, o livro que a projectaria, em definitivo, para o conjunto dos autores mais importantes do seu tempo. Para trás ficavam cinco anos de trabalho intenso, que lhe permitiram fazer um «assalto» ao século XIX europeu, o século da burguesia, no qual cristalizaram os elementos que, na sua opinião, prepararam o aparecimento do totalitarismo na Alemanha. Que elementos, ou complexo de problemas, eram esses que permitiram depois aos nazis formular a «solução final»? O anti-semitismo (exemplarmente exposto na análise do Affaire Dreyfus), o imperialismo e o totalitarismo, ou seja, nesta medida falamos também da estrutura tríptica que compõe este livro. O totalitarismo seria então o resultado da transformação das classes em massas, do papel da propaganda na manipulação do comportamento político das multidões e, no uso do terror, elementos essenciais a esta forma de governo. Por isso, no último e brilhante capítulo conclusivo do livro, Arendt analisa e adverte para a natureza do isolamento e da solidão dos indivíduos numa sociedade de massas, como sendo as pré-condições para o domínio total.[55] Acontece que nesta nova fase do seu trabalho intelectual, Arendt retomou um dos conceitos mais ricos e complexos da obra de Agostinho, o conceito de memória/memoria. Noção que, aliás, também já se encontra no centro da sua dissertação de doutoramento, mas que quando evocada, em tempo de pós-Holocausto, adquire um alcance novo. Neste sentido, também o seu livro Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil, representa a necessidade de confrontar a memória e a história recentes, com a natureza do juízo e da acção política. Vale a pena, neste contexto, recordar as belas palavras que S. Agostinho escreveu a propósito do espantoso poder da memoria: «... dirijo-me para as planícies e os vastos palácios da memória, onde estão tesouros de inumeráveis imagens veiculadas por toda a espécie de coisas que se sentiram. Aí está escondido também tudo aquilo que pensamos, quer aumentando, quer diminuindo, quer variando de qualquer modo que seja as coisas que os sentidos atingiram, e ainda tudo aquilo que lhe tenha sido confiado, e nela depositado, e que o esquecimento ainda não absorveu nem sepultou.»[56] Dir-se-ia que, ao retomar o tema da memória, Arendt como que reconfigurou o «espaço» heideggeriano, deslocando-o do terreno do Ser para o domínio concreto da condição humana. Deste modo, com a sua chegada à América, Arendt foi confrontada com a necessidade de compreender e aplicar os seus esquemas filosóficos conceptuais à natureza diversa do espaço público americano. Então, foi como se o conceito de vizinhança ou de proximidade, aurido em Agostinho, se tivesse transformado num «mundo constituído por homens», os quais se tornam cidadãos de repúblicas constituídas do ponto de vista dos seus direitos, e ligados entre si por contratos políticos e sociais. Mais, a memoria, ou espaço público, na qual o passado e o futuro se encontram num «sempre eterno» presente, surge agora, nos seus livros do período americano, como o ponto ideal para o observador/actor poder fundamentar, não só o juízo de natureza política, mas também o pensamento e a vontade livre.[57]

A publicação do livro The Origins of Totalitarianism despertou, igualmente, a atenção e o interesse do mundo universitário norte-americano pela obra de Hannah Arendt e pela natureza do seu trabalho intelectual. Deste modo, passou a receber inúmeros convites que a levam a proferir, no ano de 1953, uma série de conferências na Universidade de Princeton, intituladas: «Karl Marx and the Tradition of Political Thought». Dois anos depois seria professora visitante, em Berkeley, na Universidade da Califórnia. Em 1956 participa nas Conferências Walgreen, organizadas pela Universidade de Chicago.[58]

No espaço de cinco anos, de 1958 a 1962, Arendt prepara três livros que resultam da reflexão original que encetara sobre o marxismo, referimo-nos a: The Human Condition, Between Past and Future e On Revolution.

Com The Human Condition, Arendt pretendeu fazer uma espécie de prolegómeno a um trabalho mais sistemático de teoria política - que a escritora planeava vir a escrever mais tarde -, ao mesmo tempo que pretendia responder aos problemas deixados em aberto no seu livro anterior. É curioso notar, também, que as categorias conceptuais que nele desenvolveu são sempre de natureza tríptica, a saber: trabalho, labor e acção; o público, o privado e o social; julgar, pensar e agir; tudo desenvolvimentos das categorias temporais do passado, presente e futuro.[59] Neste livro fica, ainda, muita clara a notável abertura do pensamento político da Hannah Arendt ao mundo, captada na expressão feliz de Elisabeth Young-Bruehl: amor mundi. Amor que se desenvolve a partir de um sentimento de responsabilidade pelo mundo, o qual inclui, implicitamente, um forte sentido crítico de mundo. Ora, também a noção amor mundi nos remete para a sua dissertação de doutoramento. Neste sentido, percebemos também que o conceito de amor, quer em Agostinho quer em Arendt, possui um locus comum: o mundo e as pessoas que o constituem.[60] Assim se compreende o cuidado especial, colocado por Arendt, nas pessoas e na sua acção no mundo. Porque em sua opinião, a origem da verdadeira acção não se encontra na perspectiva da morte, mas na retrospectiva do nascimento. A morte iguala os homens, mas o nascimento é o acontecimento que fundamenta a singularidade de cada um. Porque cada pessoa é um initium e, neste sentido, um novo começo de mundo. Deste modo, são os recém-chegados ao mundo que asseguram a diversidade da acção humana e que garantem novas iniciativas. Esta filosofia da «natalidade» inerente à acção humana, constitui, não só a resposta de Arendt à filosofia de Heidegger do «ser para a morte», mas é também a base da sua concepção sobre a política e a democracia. Num mundo em que as pessoas devem viver juntas, a faculdade de actuar garante que cada uma delas conserve a sua idiossincrasia, sem que ninguém considere a peculiaridade do outro como uma limitação, mas antes como uma oportunidade de perguntar-se, uma e outra vez, em concerto com os outros, sobre o sentido da vida comum. É no fundo a defesa do princípio da riqueza única, que resulta do respeito pela pluralidade e diversidade inerentes à acção humana.[61]

Margaret Canovan sublinhou a actualidade desta obra de Arendt, ao referir, por exemplo, que ela funcionou como um livro de referência para os movimentos estudantis da década de 60 e que reivindicavam uma democracia participativa; por outro lado, a complexidade e a actualidade da obra permite, ainda hoje, que ela suscite diferentes leituras e um debate profícuo e plural entre: «aristotélicos, fenomenologistas, habermasianos, pós-modernistas, femininistas, entre outros».[62]

Já os ensaios que reuniu em Between Past and Future, livro publicado em 1961, continuam a procurar responder aos problemas deixados em aberto nessa obra fecunda que é The Origins of Totalitarianism e daí que problematize nela temas tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão contemporâneos, como: a tradição, o conceito antigo e moderno de história, a autoridade, a liberdade, a crise na educação e na cultura, a verdade em política, e a conquista do espaço pelo homem.[63] Quanto ao livro On Revolution publicado em 1963 e que integra a trilogia iniciada com The Human Condition, chamamos a atenção para o facto de nele Arendt proceder a uma análise comparativa, em termos históricos e políticos, das revoluções Americana e Francesa.

No ano de 1961, Arendt teve conhecimento que Otto Adolf Eichmann fora «interceptado num subúrbio de Buenos Aires na tarde de 11 de Maio de 1960, transportado de avião para Israel nove dias depois e levado a julgamento perante o Tribunal de Jerusalém, a 11 de Abril de 1961… havia cometido crimes contra o povo judeu, crimes contra a humanidade e crimes de guerra durante toda a duração do regime nazi e especialmente durante o período da Segunda Guerra Mundial»,[64] pelo que Arendt se propôs viajar para Israel e fazer a cobertura do julgamento para o The New Yorker. O livro que dele resultou, porém, só apareceria dois anos mais tarde. Mas quando foi editado, foi-o no meio de uma enorme controvérsia, suscitada pelos historiadores e pelos membros da comunidade judaica que haviam lido as crónicas que escrevera na imprensa sobre o processo. E este terá sido o mérito da obra, pois conduziu a desencadear novas investigações sobre o genocídio dos judeus perpetrado pelos nazis. Durante todo o processo, Eichmann procurou criar uma nova imagem de si próprio, intenção tanto mais inquietante quanto o criminoso tendia a levar o tribunal a crer que o seu comportamento era um comportamento «banal». Arendt registou ainda que, o comportamento de Eichmann encontrou várias «cumplicidades» na população alemã dos países por onde passara e, sobretudo, também encontrara cooperação no seio das comunidades de judeus e entre os seus próprios líderes. E foi este último facto que suscitou e intensificou a controvérsia em torno do seu livro.

Entre 1963 e 1967, o reconhecimento do mérito científico de Arendt tornara-se efectivo no meio académico e daí ter ensinado neste período na Universidade de Chicago e, por último, entre 1967 e 1975, tornou-se professora na New School for Social Research de Nova Iorque.

Entretanto, continuara a escrever e publicara, em 1968, um livro que reúne uma série de ensaios biográficos sobre personalidades muito díspares umas das outras. Porém, essas personalidades tinham um traço comum entre elas, haviam sido contemporâneas e tinham vivido um tempo histórico marcado por «tempos sombrios»,[65] expressão que Arendt retirara do poema de Brecht «Aos que Virão a Nascer». É assim que podemos ler em Men in Dark Times, algo de essencial sobre a vida e a acção de personalidades tão diferentes como: João XXIII, Karl Jaspers, Hermann Broch, Waldemar Gurian, Randall Jarrell, para além dos anteriormente referidos, Rosa Luxemburgo, Walter Benjamin e Bertolt Brecht. Em 1972 sairá à luz do dia Crises of the Republic,[66] que reúne quatro estudos que reflectem as crises políticas que marcaram os anos 60 e 70, e que questionam a forma como o governo norte-americano lhes respondeu. Importa ter presente que Arendt desenvolveu na fase final da sua vida uma oposição crítica às intervenções americanas nas guerras do Vietname e do Cambodja, tal como assistirá à crise dos mísseis de 1962 e, um ano depois, ao assassínio em Dallas do presidente John Fitzgerald Kennedy. Todos estes acontecimentos políticos conduziram-na a pensar em desenvolver uma «moral política» que poderia ser importante para enfrentar as crises sociais e políticas que marcaram o último terço do século XX.[67] Daí procurar responder à actualidade dos problemas do seu tempo, reflectindo sobre as consequências dos acontecimentos políticos para o ponto de vista republicano, em estudos específicos dedicados a analisar: os documentos do Pentágono que suportaram as decisões dos EUA acerca da política a seguir no Vietname; a mentira em política; ou o uso da violência; e a questão da desobediência civil.

No plano pessoal, Arendt sentia que a sua vida estava a chegar ao seu termo, ainda que estivesse decidida a não sacrificar o essencial do seu trabalho ao cansaço e às limitações criadas pelo seu estado de saúde. Isso mesmo confessou em carta à sua amiga Mary McCarty, nestes termos: «Sinto-me como estando de saída; há muito para fazer, a New School ocupa cada vez mais o meu tempo… Também a minha angina de peito está confirmada. Não que tenha de me preocupar com isso. Como, certamente, não me proponho viver para a minha saúde, farei aquilo que me parece justo fazer, quer dizer, evitar tudo o que possa trazer consequências desagradáveis… Reduzir ou baixar o consumo do tabaco, talvez, contanto que tal não me incomode ou impeça de trabalhar.»[68] Não obstante, o seu trabalho intelectual continua e durante o Verão de 1974, Arendt não deixou de acompanhar com atenção os acontecimentos revolucionários que tiveram lugar em Portugal e que se seguiram ao 25 de Abril, atestando que o seu interesse pela política continuava vivo.[69] Na Primavera de 1975, o ano da sua morte, Hannah Arendt recebeu do governo dinamarquês o Prémio Sonning como reconhecimento do seu contributo para a cultura europeia, e concretamente, pelo seu trabalho como historiadora do totalitarismo e pelas suas contribuições no campo da teoria política.

O último livro de Arendt, The Life of the Mind,[70] veio a ser publicado a título póstumo, e foi organizado pela escritora Mary McCarthy. O projecto do livro, que ficou por concluir, consistia em analisar a história das relações antagónicas, entre o pensar (thinking) e o querer (willing), entre o espaço pensante e o campo da acção política, onde a contingência e o inesperado se acham desconcertantemente presentes. Já antes, em The Human Condition procurara escrever sobre a vita activa, sem a descrever na óptica da vita contemplativa, daí a perspectiva dinâmica que desenvolveu sobre as actividades mentais do pensar, julgar e querer. Agora, o pensar é entendido no sentido socrático do termo, como uma função maiêutica, ou obstétrica. Com ele vêm à superfície todas as opiniões, preconceitos, etc. Daí a releitura da obra de Kant Crítica da Faculdade do Juízo,[71] não porque estivesse interessada na estética, mas porque pensava que quando se afirma «isto é justo, isto é injusto», no fundo não é substancialmente diferente do modo em que dizemos «isto é bonito, isto é feio». Quanto à noção de vontade, que Heidegger interpretou, em termos de autocracia ou de vontade de poder e associava ao inevitável domínio destruidor da técnica, Arendt vai criticar esta interpretação heideggeriana da vontade. Tratou-se mesmo de uma noção que Arendt queria refutar. Para ela o próprio acto de pensar é já um modo de actuar. A concluir The Life of the Mind, Arendt projectava chegar a uma espécie de «tratado de paz», ou juízo, entre o pensamento e a vontade.

No entanto, e mesmo nesta fase final do seu trabalho filosófico, não deixa de ser significativo que tenha dedicado um capítulo a Agostinho, a propósito da análise da vontade. Agostinho que é neste livro considerado, em sua opinião, não só como o primeiro filósofo cristão, mas também e em bom rigor, o único filósofo que os Romanos tiveram.[72] Sendo certo que, embora Hannah Arendt o inclua no conjunto dos maiores e mais originais pensadores de todos os tempos, reconhece também que S. Agostinho não foi um «pensador sistemático», até porque grande parte da sua obra é marcada por problemáticas de carácter religioso e literário. Contudo, faz uma chamada de atenção para o importante facto histórico e institucional, segundo o qual a própria Igreja Católica Romana apesar de ter sofrido uma influência decisiva da filosofia Grega, todavia terá permanecido profundamente Romana, devido, em larga medida, à estranha coincidência de Agostinho, o «primeiro e mais influente filósofo», ter bebido a sua mais profunda inspiração nas fontes e na cultura latinas.

Ao fazer uma genealogia do problema da vontade em Agostinho, Arendt concluiu que este, no fundo, reflectiu e conceptualizou as palavras de S. Paulo: «O amor jamais passará» (I Coríntios 13, 8). Conceptualização da vontade que não foi entendida por Agostinho como uma faculdade separada, mas antes perspectivada como uma função no interior do espírito como um tudo, no qual todas as faculdades - a memória, o intelecto e a vontade – são «referidas entre si», e encontram a sua redenção ao serem transformadas em amor. Em suma, e parafraseando S. Agostinho, Hannah Arendt é levada a afirmar que o amor é a força da gravidade da alma.[73]



[1] Sobre esta figura incontornável do pensamento contemporâneo e, em particular, sobre a sua relação com o CADC e a revista Estudos, cf. TORGAL, Luís Reis – Miguel Baptista Pereira, Pensador Católico. In O Homem e o Tempo: Liber Amicorum para Miguel Baptista Pereira. Porto: FAA, 1999, pp. 423-439.

[2] Cf. ARENDT, Hannah – On Revolution. Londres: Penguin Books, 1990, p. 13.

[3] Cf. A título de exemplo, leia-se o angustiante depoimento autobiográfico sobre a saída da sua família da Alemanha, em: MOSSE, George L. – Confronting History: A Memoir. Madison: The University of Wisconsin, 2000, pp. 66-70.

[4] What Remains? The Language Remains. A Conversation with Günter Gaus. In BAEHR, Peter (edit.) The Portable Hannah Arendt. Nova Iorque: Penguin Books, 2000, p. 3.

[5] What Remains? The Language Remains, p. 4.

[6] Id., o. c., p. 5.

[7] Cf. AMIEL, Anne – La non-philosophie de Hannah Arendt: Révolution et jugement. Paris: PUF, 2001, p. 267.

[8] Cf. The Faith of Hannah Arendt: Amor Mundi and its Critique-Assimilation of Religious Experience. In BERNAUER, James S. (edit.) – Amor Mundi: Explorations in the Faith and Thought of Hannah Arendt. Boston: Martinus Nijhoff, 1987, p. 2.

[9] Cf. ARENDT, Hannah – The Origins of Totalitarianism. San Diego: Harcourt, 1994.

[10] Cf. Id., Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil. Nova Iorque: Penguin Books, 1997.

[11] Cf. AGOSTINHO – A Cidade de Deus. Lisboa: FCG, 1991.Vol. I, p. 73.

[12] Cf. SCOTT, Joanna Vecchiarelli; STARK, Judith Chelius – Rediscovering Hannah Arendt. In ARENDT, Hannah - Love and Saint Augustine. Chicago: The University of Chicago, 1996, p. 130.

[13] Königsberg era então uma importante cidade portuária junto ao mar Báltico. Porém, havia sido a antiga capital da Prússia e, além do mais, ficara famosa por ter sido a terra natal de Kant, onde este leccionara na Universidade Albertina e escrevera a sua imortal obra filosófica. Kant é, também, um autor crucial para a compreensão do pensamento político de Hannah Arendt. Assinale-se, de igual modo, que este ano perfazem 200 anos sobre a sua morte.

[14] O diário Unser Kind [A Nossa Filha] de Martha Arendt, integra hoje o The Hannah Arendt Papers at the Library of Congress, navegável em: http:/memory.loc.gov/amnem/arendthtml/arendthome.html. Trata-se de um programa de digitalização do importante acervo de documentos legado pela escritora àquela biblioteca. É constituído por cerca de 75 000 imagens digitalizadas e foi desenvolvido pela Divisão de Manuscritos, em colaboração com a New School for Social Research de Nova Iorque e a Universidade de Oldenburg na Alemanha.

[15] YOUNG-BRUEHL, Elisabeth – Hannah Arendt: For Love of the World. New Haven: Yale University, 1982, p. 16.

[16] Id., o. c., p. 23.

[17] Cf. Id., o. c., p. 32.

[18] What Remains? The Language Remains, p. 9.

[19] Cf. YOUNG-BRUEHL, Elisabeth – Hannah Arendt: For Love of the World, pp. 42-48.

[20] A paixão entre Arendt e Heidegger permanecerá para o resto das suas vidas, embora seja marcada por momentos de desapontamento, hostilidade e exaspero. Hannah Arendt terá denominado esta relação como sendo marcada pelo chamado «romantismo oblíquo» de juventude, cf. BAEHR, Peter (edit.) – The Portable Hannah Arendt, p. IX. Todavia, o melhor estudo que conhecemos sobre esta relação dramática, entre dois dos maiores filósofos do século XX, é da autoria de Elzbieta Ettinger, a qual identificou terem existido três fases distintas neste relacionamento: a primeira, entre 1925 e 1930, quando os dois foram amantes; o início de 1930 (Heidegger junta-se ao Partido Nazi em 1933) até 1950, quando as suas vidas são radicalmente separadas pela ascensão ao poder do nacional-socialismo e pelos acontecimentos da 2.ª Guerra Mundial; e, por último, entre 1950 e 1975, quando Arendt, por sua iniciativa, retoma ou inicia uma nova aproximação, a qual se desenvolve até ao seu falecimento, cf. ETTINGER, Elzbieta – Hannah Arendt Martin Heidegger. New Haven: Yale University, 1995, p. 2.

[21] (6) MH a HA (21 Mar. 1925). In Hannah Arendt Martin Heidegger: Correspondencia 1925-1975 y otros Documentos de los Legados. Barcelona: Herder, 2000, p.19.

[22](26) MH a HA (2 Ago. 1925). In o. c., p. 42.

[23] (37) MH a HA (7 Dez. 1927). In o. c., p. 57.

[24] Cf. YOUNG-BRUEHL, Elisabeth – Hannah Arendt: For Love of the World, p. 62.

[25] (20) KJ a HA (16 Nov. 1931). Hannah Arendt Karl Jaspers: Correspondence 1926-1969. Nova Iorque: Harcourt Brace Jovanovich, 1992, p. 15. Trata-se, porventura, de um dos maiores volumes de troca de correspondência jamais estabelecida entre dois filósofos, o qual documenta não só uma amizade mas também as diferentes orientações dadas ao respectivo trabalho intelectual.

[26] (140) HA a KJ (19 Fev. 1953). Hannah Arendt Karl Jaspers: Correspondence 1926-1969, p. 206.

[27] Apercebendo-se da dinâmica dada ao texto por Arendt, Joanna Vecchiarelli Scott e Judit Chelius Stark, prepararam uma edição notável e com todo o aparato próprio de uma edição crítica. A edição estabelece um cânone que inclui: a tradução original para inglês de Ashton; a primeira série de revisões designada de Cópia A; a segunda série de revisões subsequentes já dactilografadas, designada de Cópia B, cf. Love and Saint Augustine, p. XI.

[28] Cf. HEIDEGGER, Martin – El Ser y el Tiempo. México: FCE, 1982, com início no § 45.

[29] «Uma coisa é agora clara e transparente: não existem coisas futuras nem passadas; nem se pode dizer com propriedade; há três tempos, o passado, o presente e o futuro; mas talvez se pudesse dizer com propriedade: há três tempos, o presente respeitante às coisas passadas, o presente respeitante às coisas presentes, o presente respeitante às coisas futuras. Existem na minha alma estas três espécies de tempo e não as vejo em outro lugar: memória presente respeitante às coisas passadas, visão presente respeitante às coisas presentes, expectação presente respeitante às coisas futuras. Se me permitem dizê-lo, vejo e afirmo três tempos, são três», In AGOSTINHO – Confissões. Edição bilingue. Lisboa: INCM, 2000, liv. XI, cap. 26.

[30] Cf. Love and Saint Augustine, p. XV.

[31] Id., o. c.,A: 033245. Arendt refere-se às Confissões, X, 33. A tradução portuguesa completa, do período em causa, é: «Tu, porém, Senhor meu Deus, escuta-me, volta para mim o teu olhar, e vê-me, e compadece-te de mim, e cura-me, tu, a cujos olhos me tornei para mim mesmo numa interrogação, e é essa a minha doença.» Ver como Arendt retoma este mesmo problema, mais tarde, quer em sentido psicológico quer em sentido filosófico, em: The Human Condition. Chicago: The University of Chicago, 1998, p. 10.

[32] BOYLE, Patrick - Elusive Neighborliness: Hannah Arendt’s Interpretation of Saint Augustine. In BERNAUER, James S. (edit.) – Amor Mundi, p. 85.

[33] Love and Saint Augustine, A: 03360.

[34] Cf. BOYLE, Patrick - Elusive Neighborliness: Hannah Arendt’s Interpretation of Saint Augustine. In BERNAUER, James S. (edit.) – Amor Mundi, p. 87.

[35] Cf. Love and Saint Augustine, B: 033200.

[36] Cf. Love and Saint Augustine, A: 033365.

[37] Sobre estas duas noções, veja-se o cap. 12 da excelente edição de Rahel Varnhagen: The Life of a Jewess: First Complete Edition. Baltimore: The Johns Hopkins University, 1997, pp. 237-249.

[38] Cf. Rahel Varnhagen, pp. 3-69.

[39] Cf. YOUNG-BRUEHL, Elisabeth – Hannah Arendt: For Love of the World, pp. 77-80.

[40] Men in Dark Times. San Diego: Harcourt Brace, 1995, p. 39.

[41] Cf. Men in Dark Times, p. 52.

[42] What Remains? The Language Remains, p. 6.

[43] O. c., p. 12.

[44] O. c., p. 11. Interessa recordar que Martin Heidegger assumiu, no ano lectivo de 1933/1934, o reitorado da Universidade de Freiburg.

[45] Cf. YOUNG-BRUEHL, Elisabeth – Hannah Arendt: For Love of the World, pp. 113-116.

[46] Cf. Men in Dark Times, pp. 153-249.

[47] YOUNG-BRUEHL, Elisabeth – Hannah Arendt: For Love of the World, p. 124.

[48] Cf. A notável introdução a este volume de correspondência, da autoria de Lotte Kohler, em: Within Four Walls: The Correspondence between Hannah Arendt and Heinrich Blücher 1936-1968. Nova Iorque: Harcourt, 1996, pp. IX-XXVII.

[49] Men in Dark Times, p. 153.

[50] Mais tarde, em 1968, motivada pela lealdade ao amigo morto, Arendt cuidou da edição de um volume em inglês, com o título Illuminations, cuja introdução é da sua autoria. E já no ano da sua morte, em 1975, Arendt trabalhava na edição de um segundo volume que reunia outros textos de Walter Benjamin, projectado com o nome de Reflections, cf. YOUNG-BRUEHL, Elisabeth – Hannah Arendt: For Love of the World, p. 167.

[51] Cf. Id., o. c., p. 158-163.

[52] (31) HA to KJ (18 Nov. 1945). Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence, p. 23.

[53] What Remains? The Language Remains, pp. 12-13.

[54] Cf. A introdução a mais um volume de correspondência é da autoria da biógrafa de Mary McCarthy, Carol Brightman, em: Between Friends: The Correspondence of Hannah Arendt and Mary McCarthy 1949-1975. Nova Iorque: Harcourt Brace, 1995, pp. VII-XXX.

[55] Cf. The Origins of Totalitarianism. San Diego: Harcourt Brace, 1994. Em Portugal, terá sido talvez Manuel de Lucena, o historiador que maior influência denotou com respeito à obra de Arendt, e ao livro The Origins of Totalitarianism em particular. Isto mesmo nos é dito por ele, quando se lê: «Somos influenciados também por um pensamento mais recente e menos notório, que ultrapassa o liberalismo ao seguir-lhe as pisadas. Arranca de uma reflexão sobre o poder totalitário e floresce sobretudo em língua inglesa. Aqui teremos de referir sobretudo um autor, Hannah Arendt, que nas nossas deambulações não citaremos nunca mas ao qual devemos imenso… A influência sofrida foi mais íntima: trata-se de uma inspiração, quase se diria uma música, a coisa em suma mais importante que há.» In LUCENA, Manuel de – A Evolução do Sistema Corporativo Português: I O Salazarismo. Lisboa: P&R, 1976, p. 20.

[56] Confissões, p. 453.

[57] Cf. SCOTT, Joanna Vecchiarelli; STARK, Judith Chelius – Rediscovering Hannah Arendt. In Love and Saint Augustine, pp. 142-143.

[58] Cf. BAEHR, Peter (edit.) The Portable Hannah Arendt, p. LVI.

[59] Cf. O «Table of Contents» de The Human Condition, pp. V-VI.

[60] Cf. BOYLE, Patrick - Elusive Neighborliness: Hannah Arendt’s Interpretation of Saint Augustine. In BERNAUER, James S. (edit.) – Amor Mundi, p. 101.

[61] Cf. O notável capítulo sobre a acção humana e que se inspira, como aliás é referido por Arendt, na filosofia política de Agostinho, em The Human Condition, pp. 175-248.

[62] Id., o. c., p. XVI.

[63] Cf. Between Past and Future: Eight Exercises in Political Thought. Nova Iorque: Penguin Books, 1993.

[64] Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil. Nova Iorque: Penguin Books, 1992, p. 21.

[65] Men in Dark Times, p. VIII.

[66] Atente-se à actualidade destes estudos, sobretudo, num contexto de política internacional marcado pela afirmação dos EUA como superpotência hegemónica, em: Crisis of the Republic. San Diego: Harcourt Brace, 1972.

[67] Cf. YOUNG-BRUEHL, Elisabeth – Hannah Arendt: For Love of the World, p. 383.

[68] Hannah Arendt to Mary McCarthy (8 Dez. 1971). Between Friends: The Correspondence, p. 302.

[69] YOUNG-BRUEHL, Elisabeth – Hannah Arendt: For Love of the World, p. 438.

[70] Cf. O plano de organização da obra em The Life of the Mind. San Diego: Harcourt Brace, 1997, pp. IX-XII.

[71] KANT, Immanuel – Crítica da Faculdade do Juízo. Lisboa: IN-CM, 1998.

[72] Cf. The Life of the Mind / Wiling, p. 84-85.

[73] Arendt refere-se, em The Life of the Mind / Wiling, p. 104, à seguinte passagem de A Cidade de Deus, liv. XI, cap. XXVIII: «Efectivamente, assim como a alma é arrastada pelo amor para onde quer que vá, assim também o corpo é arrastado pelo seu peso.»

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